No sistema político brasileiro, a cada quatro anos os municípios elegem seus prefeitos e os integrantes de suas Câmaras Municipais. Normalmente, as candidaturas para a prefeitura são mais visadas e geram muito mais discussão na esfera pública. O desempenho do prefeito, os argumentos da oposição e a ligação dos candidatos com os governos estadual e federal são constantemente colocados em pauta na agenda pública.
Mas, e as eleições para vereador? Seriam menos importantes? Por que a composição da Câmara Municipal para os quatro anos seguintes é colocada em segundo plano? O cientista social e professor da Universidade Federal do Paraná Ricardo Costa de Oliveira, em entrevista ao Comunicação, explica melhor a função dos vereadores - papel que é pouco conhecido pelos cidadãos - e a falta de prioridades da Câmara Municipal que, segundo o professor, só se ocupa com “ atividades de utilidade pública e de homenagens”.
Comunicação: Muitas pessoas ainda não sabem qual é o papel dos vereadores e também não têm o conhecimento de como eles se elegem. O vereador seria uma figura secundária no contexto político adotado pelo país?
Ricardo Costa de Oliveira: Na maneira como o sistema político está organizado, o vereador tem uma função subalterna, uma vez que ele está submetido às intenções políticas dos executivos municipais. E as câmaras municipais passaram a ter um papel de coadjuvante no chamado ‘pacto homologatório’, ou seja, as principais políticas que vêm dos prefeitos são aprovadas pelos vereadores sem maiores questionamentos. E as câmaras se dedicam, basicamente, às atividades de utilidade pública e de homenagens. Com isso, há um desvirtuamento do papel do vereador, que deve ser muito mais importante.
O vereador deve, em primeiro lugar, fiscalizar o prefeito e os seus secretários municipais, e votar os orçamentos municipais de maneira mais completa (em relação ao que é feito hoje). Com isso, o vereador passa a formular um projeto de planejamento urbano. Geralmente, eles não fazem isso, pois o pacote vem completo e quase fechado e eles apenas homologam.
Os vereadores também devem votar políticas públicas e legislações, para os municípios. Além de ficarem na utilidade pública e nas homenagens, eles se dedicam a relações baseadas no clientelismo e no assistencialismo. Ou seja, têm gabinetes de atendimento para a população que extrapolam as funções do vereador. Esses gabinetes oferecem cadeiras de rodas, remédios, vantagens, que são importantes pra a população, mas que não correspondem ao papel do vereador.
Comunicação: E o fato de as eleições para vereador serem proporcionais, isso privilegia demais os partidos e prejudica os candidatos?
Oliveira: Depende do caso. Muitas vezes os vereadores procuram vantagens. Em Curitiba, a Câmara Municipal votou um grande reajuste salarial para o prefeito, para o vice, para o presidente da Câmara e para eles mesmos, (que passa a valer) na próxima legislatura, sendo que a maioria se reelege. O prefeito Beto Richa vetou o aumento para prefeito e vice-prefeito porque era ano eleitoral, mas houve um grande aumento, acima das correções, para o presidente da Câmara Municipal, que, com isso, tem muito poder e muita influência. Eles mesmos votaram seu próprio reajuste, o que também desagradou à opinião pública.
De acordo com a ONG Transparência Brasil, o custo per capita por vereador é de cerca de dois milhões de reais ao ano. É muito dinheiro para o que eles fazem. Então, é preciso redimensionar esses gastos, uma vez que esse dinheiro poderia ser mais bem empregado nas áreas carentes da população, nas periferias. Outro dia, eu estava vendo um catador de lixo com sua família no meio do frio e da chuva. O que ele está ganhando da prefeitura ou da Câmara Municipal? O custo de dois milhões por ano, para que os vereadores votem utilidade pública e homenagens, é muito alto. Eles poderiam fazer o que fazem com muito menos dinheiro.
E além do mais, eles tendem o tempo todo a aumentar as condições de trabalho, como mais verbas e condições para os gabinetes. Tudo isso para beneficiar a reeleição, de modo que vereador se torna quase uma profissão; eles passam a ser políticos profissionais. É sempre importante na democracia que haja renovação, rotatividade.
E a população também não conhece os vereadores. Foi feita uma pesquisa pela Paraná Pesquisas que mostrou que cerca de 70% dos eleitores não conseguem apontar o nome de nenhum vereador de sua cidade. A grande maioria do eleitorado não se lembra em quem votou. E mais: quase 90% do eleitorado não conseguiram identificar nenhum projeto votado na Câmara Municipal, o que mostra o distanciamento e a falta de conhecimento sobre a Câmara dos Vereadores.
Comunicação: Por que existe essa suposta falta de interesse pelas atividades do vereador? A Câmara está distante da sociedade?
Oliveira: As pesquisas mostraram que a cidade desconhece o nome dos vereadores e não conhece os projetos votados, pois muitas vezes são projetos afastados dos interesses da grande maioria. Tirando a utilidade pública e as homenagens, nós vemos que a Câmara discute pouco. Os vereadores representam bairros ou áreas da cidade, e isso é importante, pois eles passam a ser conhecidos e a ter uma relação mais direta com os eleitores. Já outros vereadores constroem uma estrutura fisiológica de clientelismo, e são conhecidos por poucos grupos; é uma relação quase que privada com alguns eleitores. Nós temos grandes cidades, como Curitiba, com eleitorado muito grande, superior a um milhão de habitantes, e a gente observa que os vereadores não conseguem se relacionar com a grande maioria da população.
E é importante o papel do vereador como promotor ou formulador de políticas públicas e sociais. Ou seja, eles deveriam trabalhar na área do transporte público, na questão viária e na questão da saúde, mas o grande objetivo deles é tentar se reeleger.
Comunicação: E é mais correto que os vereadores mantenham esse vínculo com o bairro ou que legislem pela cidade inteira?
Oliveira: Alguns mantêm um vínculo tradicional, são considerados vereadores de bairros. Outros já têm a cidade como um todo; e há os que migram, ou seja, investem dinheiro na campanha em um bairro e a votação vai para outro lado da cidade.
Há também a questão do abuso do poder econômico. Alguns candidatos com muito dinheiro e que utilizam grandes volumes de investimentos na campanha têm mais benefícios e grandes vantagens. A Justiça Eleitoral deve estar atenta de modo a tentar coibir ou, pelo menos, diminuir a influência do poder econômico (durante a campanha). As denúncias de abuso de poder econômico sempre têm de ser investigadas pela sociedade.
Comunicação: Existe uma tendência de que esse panorama (a da eleição dos candidatos que mais investem em campanha) se altere para os próximos anos? Pois, nesse ano, tivemos alguns candidatos eleitos que não eram tão conhecidos assim, como o candidato Professor Galdino, do Partido Verde.
Oliveira: Exatamente. Mas é uma minoria. O caso do Professor Galdino foi interessante porque ele já vinha de duas eleições. E ele fez um trabalho braçal intensivo na área central, principalmente no calçadão da Rua XV, conseguindo, assim, se destacar. Sendo um professor, sem muito dinheiro, ele passou a compor a galeria de personalidades folclóricas do centro de Curitiba, ao lado do “Oil Man” e de outras figuras. Então, é claro, ele ficou conhecido, apresentou sua proposta e foi eleito. Mas a gente observa que a renovação é limitada.
Nós tivemos vinte vereadores reeleitos, dentre os 38, e 18 eleitos, e muitos (eleitos pela primeira vez) têm vínculos com poderes tradicionais. É o caso, por exemplo, do Algaci Túlio, que já tinha sido vereador, deputado e até mesmo prefeito em exercício, quando foi vice do Cássio Taniguchi. Não se pode dizer que tenha sido uma renovação. Ou então, as bancadas de filhos de políticos, tradicional elemento que conecta relações de parentesco e poder político, um dos traços mais marcantes da política paranaense, muito centrada no familismo. Também entrou na Câmara Municipal Omar Sabag Filho, que é um engenheiro e filho de um outro ex-prefeito de Curitiba, ou o Juliano Borgeti, do PP, irmão da deputada estadual Cida Borgeti que, por sua vez, é casada com Ricardo Barros, deputado federal que é irmão do prefeito de Maringá Silvio Barros, também os dois filhos de ex-prefeito.
Há o Jhonny Stica, do PT, que é um arquiteto com boas idéias, mas filho de Natálio Stica, que foi vereador, deputado e que, atualmente, está trabalhando na Sanepar. Também temos o caso da Renata Bueno, filha do líder do PPS no Paraná, Rubens Bueno, ex-deputado e muitas vezes candidato. Então, quando não é o próprio nome, você vê a reprodução através de seus parentes. Essa renovação, portanto, deve ser vista com muita cautela, porque significa mais dos mesmos.
Comunicação: O candidato eleito com o menor número de votos nas eleições desse ano foi Dirceu Moreira, do PSL, com 2.593 votos. 41 candidatos obtiveram mais votos do que ele e não foram eleitos.
Oliveira: Exatamente, o Dirceu Moreira entrou pela sua coligação. O candidato que teve a maior votação e não se elegeu foi o Sandoval, do PTB, com 7.180 votos. O que aconteceu é que o candidato a prefeito pelo PTB Fábio Camargo foi mal nas eleições e puxou pra baixo a votação dos vereadores do PTB. Mas é essa a maneira pela qual o sistema está estruturado. Muitos candidatos tiveram grandes votações e não entraram em função da legenda e das coligações. O PTB não elegeu ninguém. E o candidato mais votado foi o (Roberto) Accioly, acusado pela imprensa de estar envolvido em um assassinato, o que também abriu um grande debate na sociedade, já que isso não tinha sido comentado durante a campanha.
Nós vemos que é preciso conhecer melhor o perfil dos candidatos e ter informações antes que eles sejam eleitos. Há casos de políticos como o Belinati, em Londrina, um típico político ficha suja que continua sempre com uma grande votação na cidade. Deve-se mudar a cultura política do eleitor de modo a qualificar ainda mais o perfil de sua formação.
Ainda nessa legislatura, de 2005 a 2008, houve nepotismo. Agora, em função da decisão do STF, e também da vergonha que está se tornando a prática, a própria Câmara Municipal demitiu os nepotes ao longo da legislatura. Devido à pressão popular, da imprensa e do Ministério Público hoje já não há nepotismo na Câmara Municipal. Isso mostra que o eleitor pode ficar otimista, pois a sociedade civil organizada muda a cultura política e melhora as instituições.
Comunicação: Em alguns países, como Portugal, o vereador exerce função executiva. Nem em todos os países, portanto, ele exerce função legislativa. Qual a diferença entre essas duas atribuições?
Oliveira: É que no caso de Portugal, o presidente da Câmara exerce a função do executivo. Aqui no Brasil nós temos uma tradição da hipertrofia e da hiperatividade do Executivo. Ele é o principal poder e o Legislativo é o poder subalterno. Tudo o que venha do prefeito geralmente é aprovado nas Câmaras Municipais. É o que foi chamado de “Pacto Homologatório”. A Câmara aprova tudo e, por sua vez, o prefeito oferece boas condições de remuneração para os vereadores. As Câmaras, como eu já havia dito, recebem muito recurso pelo que elas fazem. Esses recursos poderiam ser investidos na área social, de educação, de saúde, transporte e moradia, e não nos vereadores. Temos sempre que tentar limitar essa condição, para que os vereadores possam fiscalizar, criticar, deliberar e ter uma relação respeitosa com o Executivo, que é o que não acontece no Brasil.
Comunicação: É importante para o candidato ter experiência no legislativo antes de concorrer a um cargo no executivo?
Oliveira: Não necessariamente. Nós podemos ter muitos dirigentes que têm um grande perfil administrativo no Executivo e que nunca passaram pelo Legislativo. O Jaime Lerner, por exemplo, foi prefeito de Curitiba várias vezes, além de governador do estado por duas vezes, e nunca teve nenhum cargo no Legislativo. Já outros políticos, como Roberto Requião, Álvaro Dias e Beto Richa, já passaram pelos dois poderes. Então, depende muito do perfil de cada personagem.
Comunicação: Durante o horário eleitoral gratuito, o candidato a vereador possui um espaço ínfimo para a apresentação de suas propostas. Isso não prejudica os candidatos? Por que o sistema de propaganda foi desenvolvido dessa forma? E a culpa é da legislação eleitoral ou dos próprios partidos?
Oliveira: Eu acho que a culpa é de todos, porque não é possível conhecer bem todo mundo devido ao grande número de candidatos. Nós tivemos quase 800 candidatos a vereador em Curitiba, para 38 vagas. É uma avalanche de informações, de rostos, de idéias, às vezes uns querendo aparecer mais do que os outros, e isso não permite um conhecimento das propostas, dos planos de governo ou do perfil. É a sociedade do espetáculo. Todos querem aparecer. Seria interessante um voto mais ‘distritalizado’. Você, no seu bairro, vota nos candidatos que representariam o seu bairro. Você teria mais conhecimento, mais proximidade e uma relação mais direta do que candidatos que saem coletando votos num município de mais de um milhão de eleitores. Há uma subrepresentação de vários bairros e de vários conjuntos eleitorais em Curitiba.
Comunicação: Muitas vezes o vereador promete que irá fazer isso ou aquilo caso seja eleito, mas algumas promessas não estão além da alçada do vereador, já que dependem da maioria da Câmara para serem aprovadas? E o eleitor acredita nessas propostas?
Oliveira: Muitos prometem as coisas mais absurdas e abstratas e que não dependem do Poder Legislativo. É preciso que o candidato conheça o papel do vereador, para não ser um vereador clientelista, mas um vereador que contribua para o planejamento urbano e o desenvolvimento social e cultural da cidade. Que investigue e fiscalize sempre o executivo, cobrando transparência.
Ainda hoje, não há na Internet o nome de todos os funcionários da Câmara Municipal, nem da Assembléia Legislativa. A transparência é muito importante. Saber quais são os assessores nos gabinetes dos vereadores e dos deputados estaduais. Paraná e Curitiba estão atrasados nesse quesito. É importante também o vereador trabalhar na área de educação, saúde, transporte, meio ambiente. A cidade de Curitiba possui um meio ambiente muito deteriorado. Na área cultural já tivemos elaboração de leis muito interessantes. O papel do vereador deve ser muito dinâmico e bem formado, não pode ficar apenas em utilidade pública e homenagens que não tenham relevância alguma para a cidade.
Matéria veiculada no site do Jornal Comunicação On-line no dia 27/10/2008.
Link para a reportagem:
http://www.jornalcomunicacao.ufpr.br/node/5254